Ideologia cega
Por Kátia Abreu
Os Tenharim são uma prova viva da ficção ideológica na qual vive a Funai
O desconhecimento e a má-fé não poderiam ser as características principais de uma pessoa que se apresenta como antropólogo e conhecedor da realidade brasileira. A ciência, como se sabe, caracteriza-se pela imparcialidade do cientista, pela universalidade de suas proposições e por uma conduta isenta, baseada na busca da verdade.
O artigo de Uirá Garcia – “O chão e a fúria” –, referindo-se a mim e à Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), entidade que presido, mostra tão somente a “fúria” de uma pessoa descomprometida com a verdade. Para ele, é como se a antropologia tivesse se tornado um mero instrumento de luta política, cujas lentes seriam constituídas pela ficção ideológica.
Comecemos pela situação de Humaitá, no Amazonas. Observemos, preliminarmente, que não há nenhum conflito fundiário em questão. Os indígenas não estão reclamando por mais terras, mas simplesmente por uma atitude da Funai que respeite os acordos por ela firmados com essa tribo. Na medida em que esse órgão estatal se caracteriza pela omissão e pela incompetência, os indígenas começaram a cobrar pedágios que remontam a 2006, chegando a R$ 115, das pessoas que utilizam a rodovia Transamazônica.
Um cacique Tenharim chegou a declarar que os habitantes da região não têm nada a ver com a situação deles, mas que decidiram cobrar ilegalmente pedágio para arrecadar recursos e chamar a atenção da própria Funai. Os não indígenas seriam meros bodes expiatórios!
O bispo da região declarou que a situação de tensão entre brasileiros índios e não índios começou com a cobrança dos pedágios, tendo uma relação harmoniosa se envenenado. O estopim foi o desaparecimento de três pessoas que, segundo testemunhas, foram vistas sendo conduzidas por indígenas para uma aldeia. Desde então, não há notícias deles. Nenhuma investigação séria foi feita pela Funai e por outros órgãos, provocando a reação que se transformou em uma espécie de rebelião.
Diga-se de passagem, os indígenas que chegaram a se sentir ameaçados foram protegidos pelo Exército. Este, sim, porta-se como instituição de Estado que é, e não como um sindicato, como se conduz a Funai.
Nos dias imediatamente posteriores à reação da população contra o sequestro dessas três pessoas, alguns jornalistas, seguindo a versão do responsável regional da Funai, veicularam a informação de que esse sequestro seria a reação de indígenas à morte de um cacique em condições misteriosas. Ora, não havia mistério algum. O cacique morreu em acidente de moto, algo publicamente reconhecido por seu filho e outros familiares. Na última sexta-feira, o funcionário foi exonerado, por absoluta irresponsabilidade.
Contudo, o estrago estava feito. A porta da violência havia sido aberta: imediatamente, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) veiculou a “informação”, emprestando-lhe credibilidade.
Note-se que os Tenharim são uma prova viva da ficção ideológica na qual vive a Funai. O cacique morreu em um acidente de moto, veículo que as famílias da aldeia têm na porta da frente. Todas as moradias possuem internet e muitos dos indígenas vivem e trabalham nas cidades da região.
Outro cacique declarou que os Tenharim quer melhores condições de vida e de educação para seus filhos, como todo cidadão brasileiro. Disse, ainda, que o modelo indigenista da Funai estava ultrapassado, não se adequando às suas expectativas de vida. Eles não vivem da ficção ideológica, segundo a qual os povos indígenas sobrevivem da caça e da pesca, reclusos em territórios apartados da civilização.
Quanto aos Awá-Guajá, cujas terras se encontram em um processo de desintrusão, conforme decisão judicial, defendemos o Estado de Direito. O que não aceitamos é a aplicação de dois pesos e duas medidas.
Por que a lei não deveria valer quando se trata de decisões judiciais de reintegração de posse de terras de brasileiros não índios, ocupadas por brasileiros índios? É o que ocorre em várias regiões, sobretudo no Mato Grosso do Sul, onde claramente a lei não é aplicada. É como se a aplicação da lei dependesse do arbítrio da Funai.
O argumento utilizado é risível: a lei não deve ser aplicada porque produz conflitos. Mas os conflitos foram produzidos pela invasão, com uso da violência. Mesmo assim, seria forçoso reconhecer que, em todos os processos de reintegração de posse, o mesmo “cuidado” deveria ser tomado.
Outro argumento é a falta de condições logísticas. Ora, ... Ninguém é tolo! Nas retiradas de brasileiros não índios de terra indígena, mobiliza-se todo um aparato da Funai, da Polícia Federal e da Força Nacional, que se muda durante meses para a região. Já na retirada de brasileiros índios de terras não indígenas, não há logística! Por que as mesmas forças não são mobilizadas?
Quanto às afirmações do antropólogo relativas aos “latifúndios” e à “monocultura”, seu “conhecimento” não encontra nenhum amparo na realidade. Nos quatro municípios que serão afetados pela desintrusão (São João do Caru, Centro do Guilherme, Zé Doca e Governador Nilton Bello), estão cadastrados 9.621 pequenos produtores no Programa Nacional de Financiamento da Agricultura Familiar (Pronaf).
Nesta pequena região do Maranhão existem mais “pronafianos” do que em todo o estado de São Paulo, prova irrefutável de que estamos tratando de um problema que afeta principalmente pequenos agricultores familiares. A maioria desses agricultores, aliás, complementa a sua renda com o Bolsa Família.
Eis a realidade que a ficção antropológica não consegue ver. A ideologia cega!
KÁTIA ABREU, 51, senadora (PMDB/TO) e presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil)